segunda-feira, 24 de setembro de 2012

AUTODETERMINAÇÃO E PROTEÇÃO DA LEGÍTIMA: REPENSANDO O INSTITUTO DA COLAÇÃO NAS NOVAS FAMÍLIAS


Por Ronaldo Xavier Pimentel Júnior


É comum a expressão – entre juristas e doutrinadores – que o Novo Código Civil “já nasceu velho”. No que diz respeito ao Direito de Família e de Sucessões, não é diferente. O Direito Civil moderno vem passando por profundas transformações: cada vez mais constitucionalizado, principiológico e humanista. Nesse sentido verbera o douto professor Adriano Marteleto Godinho:

Alguns fatores sociais contribuíram para que o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil pudesse ocorrer. As revoluções tecnológica e industrial, em particular, provocaram uma notável reviravolta nas exigências sociais, a demandar uma crescente intervenção do Estado no âmbito das relações privadas, por meio da imposição de normas de conduta que atentassem para a valorização da pessoa humana e a imperiosidade da equilibrada distribuição de ônus e riquezas. Por isso, tornou-se insuficiente reconhecer em favor das pessoas uma noção de isonomia meramente formal, que nada acrescia para a concretização da igualdade material.[i]


E, apesar da fleuma da produção legislativa, a jurisprudência, por vezes, tem caminhado a passos largos, numa tentativa de mitigar as lacunas deixadas pelo códex.
Esse simplório estudo pretende trazer à baila as problemáticas relacionadas à liberdade de dispor dos bens em detrimento à proteção familiar, nos aspectos da doação, colação e testamento. Tudo isso inserido em uma nova estrutura familiar que, hodiernamente, vem perdendo sua feição clássica – casal heterossexual com filhos – para se transformar em uma estrutura multiforme ou mosaica.
Para conhecermos uma parte dessa problemática, faz-se mister antes, desentranharmos algumas das principais expressões e termos abordados nessa reflexão.
Autodeterminação – é uma expressão forjada no âmbito do direito internacional “autodeterminação das nações”, e é estritamente ligada à soberania. No campo do direito civil, seria a capacidade de uma pessoa gerir, dispor, organizar, gozar ou dividir os seus bens.
Legítima – a parte da herança que cabe a cada herdeiro, e que não pode ser disposta pelo testador.
Colação – é a restituição, ao monte partível, dos bens doados pelos sucedidos aos sucessores, a fim de se obter a igualdade dos quinhões hereditários, ou seja, quando aquele que recebe doação e é um herdeiro, para que não se macule o direito dos demais através da doação feita, existe a possibilidade, a depender do caso, daquilo que foi doado retornar ao todo, para que venha a ser dividido, na forma da lei, com os demais. Nas palavras do professor Eliézer Rosa:

[...] ato pelo qual o herdeiro, filho ou outro descendente traz à mesma massa comum dos bens da herança do pai ou da mãe, ou de ambos, ou outro descendente, o que recebeu do casal em vida de qualquer deles, para se dividir com os mais bens da herança entre todos os filhos ou outros descendentes do inventariado.[ii]


Novas famílias – no campo do direito, as relações familiares podem envolver casamento; pós-casamento, divórcio, recomposição familiar; nascimentos fora do casamento; monoparentalidade; não-casamento; união estável; uniões homoafetivas; etc. Em razão disso, o direito de família tem sofrido inúmeras transformações, como sentencia o ilustre professor Adriano Marteleto Godinho:

Nenhum ramo do Direito Civil está sujeito a tão intensas reviravoltas como o Direito de Família.  Os institutos que compõem esta seara jusprivatística provocam alguns dos mais instigantes debates entre a doutrina e a jurisprudência. Também o legislador tem se encarregado, nos últimos tempos, de editar uma série de normas relativas à área. Para demonstrar esta derradeira assertiva, basta analisar a quantidade de reformas operadas no Código Civil em vigor no Brasil (Lei n. 10.406/2002), apesar de seu relativo pouco tempo de vigência. Apenas a título de exemplo, é possível citar a simplificação das normas que regem a habilitação para o casamento (art. 1.526); a previsão da guarda compartilhada (arts. 1.583 e 1.584); a revogação das normas que cuidavam sobre a adoção (arts. 1.618 a 1.629), figura agora integralmente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990); a inclusão do direito de visita aos avós (art. 1.589, parágrafo único), entre diversas outras hipóteses.[iii]

A quem defenda a total liberdade de dispor dos seus bens – a autodeterminação absoluta –, contudo, o Estado, em uma atitude protetiva, inibe tal prática, e, além disso, exerce inúmeras ingerências em relação à família, a título de exemplificação: monogamia, proibição do incesto, paternidade responsável, vedação à seleção de embriões humanos nas técnicas de reprodução assistida, regimes de bens, restrições aos atos de liberalidade nos contratos de doação entre ascendentes, descendentes e cônjuges, etc. Tendo como escopo a tutela dos mais fracos na relação familiar, o convívio nesse ambiente e a dignidade da pessoa humana.
Outro ponto que não se pode olvidar, é o fato de que o Direito de Família vem se tornando um fenômeno mundial, nas palavras da ilustre pesquisadora Cláudia Elisabeth Pozzi:

A penetração de valores no direito de família consectários dos direitos fundamentais à dignidade humana e ao convívio familiar interliga o ordenamento interno ao universalismo dos direitos humanos fundamentais ao admitirem o cruzamento de preceitos normativos da intimidade familiar ligados interna e externamente a uma contemporaneidade mundializada, na qual o comércio de juízes implica em transmissão do conhecimento, especialmente por meio das influências dos tribunais internacionais no âmbito dos tribunais locais que acaba por transcender as fronteiras tradicionais do direito.[iv]


É necessária a análise de três artigos em especial. Diz o Código Civil brasileiro:

Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.
Art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação. [grifo nosso]


Frontalmente, o art. 1.845 supracitado já exclui o companheiro, o que já coloca tal indivíduo que não é casado, mas vive em união estável, numa situação de limitação, haja vista o mesmo não poder pleitear o direito de colação dos bens (art. 1.846). Tal característica do direito sucessório pode gerar inúmeros prejuízos para quem não optou pelo casamento, tendo em vista que o testador poderia doar até mesmo a legítima, em vida, para seus filhos, e com isso, se quisesse, excluiria o companheiro totalmente de sua herança, tornando impossível a aplicação do art. 1.847 por parte da mesmo. A maioria dos doutrinadores entende que a não equiparação do cônjuge ao companheiro, no caso em tela, constitui uma violação clara ao princípio da igualdade, o que não ocorre em outros ramos do direito, como é o caso do direito previdenciário.
A partir dos artigos supramencionados, identifica-se que são três os requisitos legais para a colação dos bens: a ocorrência de doação de um cônjuge a outro ou de ascendente a descendente; a participação do donatário (o que recebe a doação) na sucessão do doador e por fim, o concurso na sucessão legítima entre o donatário e os demais herdeiros necessários – o que exclui o companheiro.
O art. 544 do Código Civil afirma que “A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.” [grifo nosso]. Observe que nesse caso, não se inclui a doação feita de descendente a ascendente, mesmo este figurando no rol de herdeiros necessários (CC art. 1.845), assim, por exemplo, quando um filho faz uma doação ao pai, ainda que macule a legítima, a colação não é exigível, pois não seria considerado adiantamento de herança.
O art. 2.006 do Código Civil nos mostra que “A dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade.”. Ou seja, admite-se que o doador dispense expressamente da colação se a doação ocorrer dentro dos limites da parte disponível e feita no próprio instrumento ou em testamento. Mas proíbe a chamada doação inoficiosa, que seria aquela que excede a parte legítima dos herdeiros, desse modo a ineficácia absoluta atinge o que excede à esfera de proteção legal.
Outra distorção que não podemos esquecer, é a possibilidade de defasagem do valor do bem em função do lapso temporal entre a data da doação e da colação. Reza o art. 2.004 do Código Civil:

Art. 2.004. O valor de colação dos bens doados será aquele, certo ou estimativo, que lhes atribuir o ato de liberalidade.
§ 1o Se do ato de doação não constar valor certo, nem houver estimação feita naquela época, os bens serão conferidos na partilha pelo que então se calcular valessem ao tempo da liberalidade.
§ 2o Só o valor dos bens doados entrará em colação; não assim o das benfeitorias acrescidas, as quais pertencerão ao herdeiro donatário, correndo também à conta deste os rendimentos ou lucros, assim como os danos e perdas que eles sofrerem.


O legislador impossibilitou que fossem feitas correções no valor doado, bem como blindou os lucros, rendimentos e benfeitorias ao fenômeno da colação, fato esse que acaba por gerar uma espécie de enriquecimento sem causa do donatário. O legislador coloca o filho que antecipa sua herança em uma posição mais confortável, pois mesmo que a tenha que devolver, o fará sem os devidos reajustes e acréscimos. Ou seja, aquele filho que esperou até a morte do seu genitor, para receber a herança, se verá prejudicado, enquanto o que antecipou, talvez até por um ato de prodigalidade, sai no lucro.
Outra curiosidade, referente à colação e a doação, é a possibilidade de um avô, por exemplo, doar para o neto, e tal bem não retornar para futura partilha por colação, desde que a época da doação o descendente não ocupasse a qualidade de herdeiro necessário, conforme o art. 2005 do Código Civil:

Art. 2.005. São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação.
Parágrafo único. Presume-se imputada na parte disponível a liberalidade feita a descendente que, ao tempo do ato, não seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário.

           
Ademais, outra problemática são os conflitos entre ex-cônjuge e cônjuge sobrevivente, pois as doações feitas para um ex-cônjuge não podem mais ser alcançadas pelo instituto da colação, visto que, o ex-cônjuge não é mais herdeiro necessário. Contudo, as doações ao atual cônjuge, essas sempre poderão ser colacionadas em relação aos filhos havidos em casamento anterior, pois o vínculo de parentesco por filiação tem efeitos perpétuos.
Não era nossa pretensão esgotar o tema, mas apenas tecer uma crítica ao atual modelo adotado pelo Código Civil, pois o mesmo abre caminho para fraudes, injustiças e omissões. Tal problemática já é conhecida do judiciário, que pontualmente começa a se desdobrar para reparar, ainda que pontualmente, alguns desses equívocos.
Nesse sentido, nos resta lutar para que o legislador se sensibilize a toda a situação aqui mencionada, criando mecanismos para solucionar tais conflitos, ou ao menos, minimizá-los.







Notas e Referências


[i] GODINHO, Adriano Marteleto. O fenômeno da constitucionalização: um novo olhar sobre o direito civil. In: FIUZA, Ricardo Arnaldo Malheiros; GODINH O, Helena Telino Neves (Org.).  Direito constitucional em homenagem ao professor Jorge Miranda. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 1-27.

[ii] ROSA, Eliézer. Dicionário de processo civil. Rio de Janeiro: Editora de Direito, 1975. p.153.
[iii] GODINHO, Adriano Marteleto. As reformas legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais e os novos rumos para as famílias. Disponível em <www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/artigo/download/102>. Acesso em 11 set. 2012.

[iv] POZZI, Cláudia Elisabeth. Autodeterminação e proteção da legítima: repensando o instituto da colação nas novas famílias. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/novosite/artigos/detalhe/612 >. Acesso em: 10 Set. 2012.



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