Por Ronaldo Xavier Pimentel Júnior
É comum a expressão – entre
juristas e doutrinadores – que o Novo Código Civil “já nasceu velho”. No que
diz respeito ao Direito de Família e de Sucessões, não é diferente. O Direito
Civil moderno vem passando por profundas transformações: cada vez mais
constitucionalizado, principiológico e humanista. Nesse sentido verbera o douto
professor Adriano Marteleto Godinho:
Alguns fatores
sociais contribuíram para que o fenômeno da constitucionalização do Direito
Civil pudesse ocorrer. As revoluções tecnológica e industrial, em particular,
provocaram uma notável reviravolta nas exigências sociais, a demandar uma
crescente intervenção do Estado no âmbito das relações privadas, por meio da
imposição de normas de conduta que atentassem para a valorização da pessoa humana
e a imperiosidade da equilibrada distribuição de ônus e riquezas. Por isso,
tornou-se insuficiente reconhecer em favor das pessoas uma noção de isonomia
meramente formal, que nada acrescia para a concretização da igualdade material.[i]
E, apesar da fleuma da
produção legislativa, a jurisprudência, por vezes, tem caminhado a passos
largos, numa tentativa de mitigar as lacunas deixadas pelo códex.
Esse simplório estudo
pretende trazer à baila as problemáticas relacionadas à liberdade de dispor dos
bens em detrimento à proteção familiar, nos aspectos da doação, colação e
testamento. Tudo isso inserido em uma nova estrutura familiar que,
hodiernamente, vem perdendo sua feição clássica – casal heterossexual com
filhos – para se transformar em uma estrutura multiforme ou mosaica.
Para conhecermos uma parte
dessa problemática, faz-se mister antes, desentranharmos algumas das principais
expressões e termos abordados nessa reflexão.
Autodeterminação – é
uma expressão forjada no âmbito do direito internacional “autodeterminação das
nações”, e é estritamente ligada à soberania. No campo do direito civil, seria
a capacidade de uma pessoa gerir, dispor, organizar, gozar ou dividir os seus
bens.
Legítima – a
parte da herança que cabe a cada herdeiro, e que não pode ser disposta pelo
testador.
Colação – é
a restituição, ao monte partível, dos bens doados pelos sucedidos aos
sucessores, a fim de se obter a igualdade dos quinhões hereditários, ou seja,
quando aquele que recebe doação e é um herdeiro, para que não se macule o
direito dos demais através da doação feita, existe a possibilidade, a depender
do caso, daquilo que foi doado retornar ao todo, para que venha a ser dividido,
na forma da lei, com os demais. Nas palavras do professor Eliézer Rosa:
[...]
ato pelo qual o herdeiro, filho ou outro descendente traz à mesma massa comum
dos bens da herança do pai ou da mãe, ou de ambos, ou outro descendente, o que
recebeu do casal em vida de qualquer deles, para se dividir com os mais bens da
herança entre todos os filhos ou outros descendentes do inventariado.[ii]
Novas
famílias – no campo do direito, as relações familiares podem
envolver casamento; pós-casamento, divórcio, recomposição familiar; nascimentos
fora do casamento; monoparentalidade; não-casamento; união estável; uniões
homoafetivas; etc. Em razão disso, o direito de família tem sofrido inúmeras
transformações, como sentencia o ilustre professor Adriano Marteleto Godinho:
Nenhum ramo do
Direito Civil está sujeito a tão intensas reviravoltas como o Direito de
Família. Os institutos que compõem esta
seara jusprivatística provocam alguns dos mais instigantes debates entre a
doutrina e a jurisprudência. Também o legislador tem se encarregado, nos
últimos tempos, de editar uma série de normas relativas à área. Para demonstrar
esta derradeira assertiva, basta analisar a quantidade de reformas operadas no
Código Civil em vigor no Brasil (Lei n. 10.406/2002), apesar de seu relativo
pouco tempo de vigência. Apenas a título de exemplo, é possível citar a
simplificação das normas que regem a habilitação para o casamento (art. 1.526);
a previsão da guarda compartilhada (arts. 1.583 e 1.584); a revogação das
normas que cuidavam sobre a adoção (arts. 1.618 a 1.629), figura agora
integralmente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.
8.069/1990); a inclusão do direito de visita aos avós (art. 1.589, parágrafo
único), entre diversas outras hipóteses.[iii]
A
quem defenda a total liberdade de dispor dos seus bens – a autodeterminação
absoluta –, contudo, o Estado, em uma atitude protetiva, inibe tal prática, e,
além disso, exerce inúmeras ingerências em relação à família, a título de
exemplificação: monogamia, proibição do incesto, paternidade responsável, vedação
à seleção de embriões humanos nas técnicas de reprodução assistida, regimes de
bens, restrições aos atos de liberalidade nos contratos de doação entre
ascendentes, descendentes e cônjuges, etc. Tendo como escopo a tutela dos mais
fracos na relação familiar, o convívio nesse ambiente e a dignidade da pessoa
humana.
Outro ponto que não se pode
olvidar, é o fato de que o Direito de Família vem se tornando um fenômeno
mundial, nas palavras da ilustre pesquisadora Cláudia Elisabeth Pozzi:
A
penetração de valores no direito de família consectários dos direitos
fundamentais à dignidade humana e ao convívio familiar interliga o ordenamento
interno ao universalismo dos direitos humanos fundamentais ao admitirem o
cruzamento de preceitos normativos da intimidade familiar ligados interna e
externamente a uma contemporaneidade mundializada, na qual o comércio de juízes
implica em transmissão do conhecimento, especialmente por meio das influências
dos tribunais internacionais no âmbito dos tribunais locais que acaba por
transcender as fronteiras tradicionais do direito.[iv]
É necessária a análise de três
artigos em especial. Diz o Código Civil brasileiro:
Art.
1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Art.
1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo
a legítima.
Art.
1.847. Calcula-se a legítima sobre o
valor dos bens existentes na abertura da
sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em
seguida, o valor dos bens sujeitos a colação. [grifo nosso]
Frontalmente, o art. 1.845
supracitado já exclui o companheiro, o que já coloca tal indivíduo que não é
casado, mas vive em união estável, numa situação de limitação, haja vista o
mesmo não poder pleitear o direito de colação dos bens (art. 1.846). Tal
característica do direito sucessório pode gerar inúmeros prejuízos para quem não
optou pelo casamento, tendo em vista que o testador poderia doar até mesmo a legítima,
em vida, para seus filhos, e com isso, se quisesse, excluiria o companheiro
totalmente de sua herança, tornando impossível a aplicação do art. 1.847 por
parte da mesmo. A maioria dos doutrinadores entende que a não equiparação do
cônjuge ao companheiro, no caso em tela, constitui uma violação clara ao
princípio da igualdade, o que não ocorre em outros ramos do direito, como é o
caso do direito previdenciário.
A
partir dos artigos supramencionados, identifica-se que são três os requisitos
legais para a colação dos bens: a ocorrência de doação de um cônjuge a outro ou
de ascendente a descendente; a participação do donatário (o que recebe a
doação) na sucessão do doador e por fim, o concurso na sucessão legítima entre
o donatário e os demais herdeiros necessários – o que exclui o companheiro.
O art. 544 do Código Civil afirma que “A
doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro,
importa adiantamento do que lhes cabe por herança.” [grifo nosso]. Observe
que nesse caso, não se inclui a doação feita de descendente a ascendente, mesmo
este figurando no rol de herdeiros necessários (CC art. 1.845), assim, por
exemplo, quando um filho faz uma doação ao pai, ainda que macule a legítima, a
colação não é exigível, pois não seria considerado adiantamento de herança.
O art. 2.006 do Código Civil nos mostra que “A dispensa
da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título
de liberalidade.”. Ou seja, admite-se que o doador dispense expressamente da colação
se a doação ocorrer dentro dos limites da parte disponível e feita no próprio
instrumento ou em testamento. Mas proíbe a chamada doação inoficiosa, que seria
aquela que excede a parte legítima dos herdeiros, desse modo a ineficácia
absoluta atinge o que excede à esfera de proteção legal.
Outra
distorção que não podemos esquecer, é a possibilidade de defasagem do valor do
bem em função do lapso temporal entre a data da doação e da colação. Reza o
art. 2.004 do Código Civil:
Art.
2.004. O valor de colação dos bens doados será aquele, certo ou estimativo,
que lhes atribuir o ato de liberalidade.
§
1o Se do ato de doação não constar valor certo, nem houver
estimação feita naquela época, os bens serão conferidos na partilha pelo que
então se calcular valessem ao tempo da liberalidade.
§
2o Só o valor dos bens doados entrará em colação; não
assim o das benfeitorias acrescidas, as quais pertencerão ao herdeiro
donatário, correndo também à conta deste os rendimentos ou lucros, assim como
os danos e perdas que eles sofrerem.
O legislador impossibilitou que fossem feitas correções
no valor doado, bem como blindou os lucros, rendimentos e benfeitorias ao
fenômeno da colação, fato esse que acaba por gerar uma espécie de
enriquecimento sem causa do donatário. O legislador coloca o filho que antecipa
sua herança em uma posição mais confortável, pois mesmo que a tenha que
devolver, o fará sem os devidos reajustes e acréscimos. Ou seja, aquele filho
que esperou até a morte do seu genitor, para receber a herança, se verá
prejudicado, enquanto o que antecipou, talvez até por um ato de prodigalidade,
sai no lucro.
Outra curiosidade, referente à colação e a doação, é a
possibilidade de um avô, por exemplo, doar para o neto, e tal bem não retornar
para futura partilha por colação, desde que a época da doação o descendente não
ocupasse a qualidade de herdeiro necessário, conforme o art. 2005 do Código
Civil:
Art. 2.005. São dispensadas da colação
as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto
que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação.
Parágrafo único. Presume-se imputada na parte
disponível a liberalidade feita a descendente que, ao tempo do ato, não
seria chamado à sucessão na qualidade de herdeiro necessário.
Ademais, outra problemática são os conflitos entre ex-cônjuge
e cônjuge sobrevivente, pois as doações feitas para um ex-cônjuge não podem
mais ser alcançadas pelo instituto da colação, visto que, o ex-cônjuge não é
mais herdeiro necessário. Contudo, as doações ao atual cônjuge, essas sempre
poderão ser colacionadas em relação aos filhos havidos em casamento anterior,
pois o vínculo de parentesco por filiação tem efeitos perpétuos.
Não era nossa pretensão esgotar o tema, mas apenas tecer
uma crítica ao atual modelo adotado pelo Código Civil, pois o mesmo abre
caminho para fraudes, injustiças e omissões. Tal problemática já é conhecida do
judiciário, que pontualmente começa a se desdobrar para reparar, ainda que
pontualmente, alguns desses equívocos.
Nesse sentido, nos resta lutar para que o legislador se
sensibilize a toda a situação aqui mencionada, criando mecanismos para
solucionar tais conflitos, ou ao menos, minimizá-los.
Notas e Referências
[i]
GODINHO, Adriano Marteleto. O fenômeno
da constitucionalização: um novo olhar sobre o direito civil. In: FIUZA,
Ricardo Arnaldo Malheiros; GODINH O, Helena Telino Neves (Org.). Direito constitucional em homenagem ao
professor Jorge Miranda. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 1-27.
[ii] ROSA,
Eliézer. Dicionário de processo civil.
Rio de Janeiro: Editora de Direito, 1975. p.153.
[iii] GODINHO,
Adriano Marteleto. As reformas
legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais e os novos rumos para as famílias.
Disponível em <www.marcosehrhardt.adv.br/index.php/artigo/download/102>.
Acesso em 11 set. 2012.
[iv] POZZI,
Cláudia Elisabeth. Autodeterminação e
proteção da legítima: repensando o instituto da colação nas novas famílias.
Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/novosite/artigos/detalhe/612 >.
Acesso em: 10 Set. 2012.
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